Arnaldo de Natal

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Arnaldo de Natal





Arnaldo entrou em casa e tropeçou violentamente num en- feite de Natal. Aí é que se lembrou, realmente. Era Natal.

- É Natal, Arnaldo! Paz e felicidade.
Gritou a mulher, balançando nas mãos uns enfeites da ár- vore de Natal, que ela arrumava.

- Pois é. Estou vendo.

- Já comprou todos os presentes, Arnaldo? Não vai fazer que nem o último ano, que você deixou tudo pro último dia...

- Ih, esqueci mesmo... essa cabeça...

- Ah, Arnaldô! Assim não é possível, né? E agora? As cri- anças vão ficar sem presente?

- Não. Não vão, querida. Estou falando que não, por que não acredita? Dá um tempo, tá? Dá um tempo. Acabei de chegar do trabalho...

- Você trata de falar direito comigo, seu folgado. Senão eu te bato, safado. E aí, gostou da árvore?

- Ai meu Deus...

Arnaldo achava o Natal meio chato, porque tinhas más lem- branças de seus primeiros natais.


Quando ele era um pequeno garotinho gordinho, com uns oi- to anos, houve um Natal na casa dos avós e havia um Papai Noel também. Arnaldinho estava metido num lindo conjun- tinho mirim que sua mãe lhe comprara especialmente para o Natal, e do qual Arnaldo não gostava nem um pouco. “Mais é di minina, mamãe! É di minina!”. A mãe nunca dava bola às observações do pequeno. E na verdade a roupa era fe- minina, mesmo.

Quando a festa esquentou, as crianças estavam no clima eu- fórico da chegada do Papai Noel. Arnaldo e seus priminhos brincavam e brigavam junto à árvore de Natal, enquanto os pais, tios e avós, adultos muito honrados, falavam besteiras na mesa na sala de jantar. E comiam. De repente chega o tio Gustavo vestido a caráter e cheio de presentes num sa- co. Todo fantasiado, e orgulhoso da barriga de cerveja que lhe garantia as características para ser o Noel.

- Olha lá! O Papai Noel. Disse uma das tias, mal sabendo dis- farçar num tom convincente, enquanto mordia um panetone.

- Vai lá, Arnaldinho. Fala com ele, ele tem um presente pra você. Disse a mãe de Arnaldo, empurrando o filho.

- Tô cum medo, mamãe. Arnaldo estava quase chorando. A cara do Noel parecia-lhe um tanto assustadora.

- Deixa de besteira, vai lá.

Todas as crianças se divertiam no colo do velhinho, e Ar- naldo permanecia afastado, chorando. Logo as crianças co- meçaram a zombar dele, rindo de seu medo inexplicável de Papai Noel.

O Papai Noel (tio Gustavo) viu pra que lado as coisas iam e foi buscar Arnaldinho pra vir se juntar ao grupo. Levantou-se, deu a mão a ele e chamou. Arnaldo saiu correndo e não viu a árvore de Natal no meio do caminho. O Papai Noel per- deu o equilíbrio e caiu junto com ele no meio dos pre- sentes e da árvore, que logo foi ao chão.

Foi pura catástrofe. Todos ficaram pasmos. O milagre de Natal fora destruído. Toda a magia e alegria tão cuidadosa- mente preparados para as crianças estavam agora reduzi- dos a uma criança chorando que nem louca e um Papai Noel bêbado rolando pelo chão e com dificuldade para se le- vantar.

- Ajuda aqui. Ai. Meu Deus, estou preso!

- Socorro, mamãe! Tô cum medo!

- Ai, os presente, pega os presente! As criança! Elas vai tu- do discobri o segredo di Natal!

- Essas crianças...

- Vergonhoso...

- Feliz Natal, meus queridos!

- Dá o peru.

- Que peru? Não tem peru.

- Pega o tio Gustavo, ele não tá respirando!

- Pega a câmera!

- Lá lá lá... dingowbell...

- Feliz Natal!

E assim foi se desenrolando um dos piores natais da in- fância de Arnaldo. Ele agora se lembrava de cada detalhe, de cada palavra, cada gesto dos familiares naquela noite. Ficara traumatizado para sempre. E começou a se lembrar também de outras ocasiões, como aquele Natal em que ele urinou nas calças, aos seis anos, e aquele em que vomitou no meio dos presentes.


Isso provocou pânico imediato em Arnaldo, porque quando a data se aproximava ele sempre ficava encucado. Ainda mais porque tinha que comprar os presentes.

Afinal chegou o dia da véspera. Toda aquela ladainha te- diosa e repetitiva de Natal. A TV mostrava exaustivamente os anúncios mostrando tão belamente os enfeites, as luzes, a comida, e, principalmente, os brinquedos...

Arnaldo tinha ido no dia anterior na loja de brinquedos do shopping, e, é claro, já não achou mais nada de interes- sante para se comprar. Sempre deixando pra última hora...

À noite, a família inteira estava reunida na casa da mãe do Arnaldo, a avó da família. Eram quinze familiares, mais os amigos e vizinhos inoportunos ou sem família. Toda aquela euforia de Natal começou. Os sobrinhos e netos corriam por todos os cantos, ora derrubando copos no chão, ora ficando presos no banheiro. Arnaldo conversava com Júnior, seu ir- mão mais velho, mas parecia nem prestar atenção, de tanta preocupação. Mantinha os olhos fixos na árvore, trêmulo e pensativo.

Alguém veio lhe dizer que ele fora escolhido para fazer o discurso de Natal no início do jantar. Ele ficou branco. No mínimo, ninguém queria se comprometer e acabaram por escolher o mais inocente dos adultos para falar. Mas falar o que? Sobre o que? Sobre quem? Arnaldo teve dor de barriga.

- Você está bem, Arnaldo?

- Não. Quer dizer... claro que estou... é Natal! – fingiu ele, com a maior cara de dor de barriga.

Chegou a hora da ceia, todos reunidos na grande mesa, e famintos. O discurso não podia ser muito longo, senão todos logo começariam a reclamar. E Arnaldo não sabia o que ia dizer.

Ele se levantou de seu lugar, bem devagar, para ir ganhan- do tempo, para adiar sua ruína. Pigarreou, ajeitou a camisa, fingiu que abotoava um botão. Pigarreou de novo, tossiu, se engasgou. Alguns se levantaram. Quando ele engasgava, era coisa séria. Pronto. Era só o que faltava. Tossiu tanto que acabou engasgado.

Bateram nas costas dele, fizeram ele olhar para cima, as- sustaram ele, fizeram reza, benzeram um copo d’água e viraram líquido pela garganta dele. Ele cuspiu tudo e ficou vermelho que nem uma pimenta, querendo falar e não con- seguindo. Tudo virou baderna. As crianças já não estavam mais na mesa, as tias conversavam, e os tios discutiam:

- Tem que bater nas costas.

- Não, eu sou médico, tem que jogar água quente na nuca.

Jogaram água quente e Arnaldo deu um pulo até o telhado, caindo novamente em seguida na cadeira, e derrubando os copos.

- Você queimou ele!

- Eu sou médico!

- Reza um credo.

- Credo!...

- Você viu o último capítulo da das oito?

- Perdi. Mas eu vi a das seis, que tem aquele garoto que é um broto.

- Credo!...

- Vocês também estão com calor?

- Batata, passa o Juquinha! Opa...!

- Ai meu Deus.

- Feliz Natal!

A noite transcorreu assim por um bom tempo. Não houve discurso algum, todos se esqueceram desta parte e ata- caram a comida. Arnaldo só foi melhorar duas horas depois, quando chegaram com mais um problema para ele:

- Escuta, Arnaldo, temos um problema – disse Tia Augusta, a mais chata de todas elas.

- Qual?

- O Mário tá com dor de barriga, está preso no banheiro há uma hora.

- Sério? Que que ele comeu?

- Arroz.

- Ah, claro, isso explica – Arnaldo não entendeu nada.

- Mas o problema não é este!

- Não?

- Não.

- E qual é, então? – Arnaldo já imaginava.

- Bom. O Mário ia se vestir de Papai Noel este ano, mas ele não vai poder, entende?

- Claro. Já entendi tudo.

Pronto. Com essa ele não contava. Arnaldo ia ser obrigado a se vestir e ser o Papai Noel, porque, se recusasse, ia ficar muito mal, iam começar a dizer que ele não se importa com as crianças... coitadas das crianças, etc...

- Ai meu Deus... e onde está a roupa?

Ele foi se trocar. A roupa era pequena pra ele, pois tio Mário era magrinho. Só faltava, na hora, o cinto arrebentar. Ele colocou a barba, o cabelo, o chapéu e tudo mais, e se pre- parou. Era hora. No auge da animação, Arnaldão entrou na sala onde todos estavam, fingindo estar alegre e carre- gando um saco de presentes.

Mas algo saiu errado. Eis que surge, na outra porta da sala, um Papai Noel igualzinho, só que mais magro. Era o Mário, que não sabia que seria substituído. Pânico geral entre os adultos. Os Papais Noéis se encararam como num duelo de faroeste, um em cada canto da sala. Duelo de Titãs.

- Ai meu Deus, as criança! Ai, as criança!

- Não acredito! O Mário! Esqueci de avisar pra ele! – gritou Tia Augusta, inconveniente.

- As crianças vão descobrir a farsa do Natal!

- Segurem um deles! Segurem um deles e taca pra fora da sala, agora!

- Vamos lá!

Os tios, querendo resolver a situação com muita inte- ligência, correram todos juntos em direção ao Arnaldo, que não entendia nada e ficara parado na porta. Todos eles caíram em cima dele ao mesmo tempo, derrubando Arnaldo no chão e iniciando a tragédia.

As crianças choravam, desiludidas com os falsos Papais No- éis, e os adultos se amontoavam no tapete, atrapalhados. Jogaram Arnaldo no banheiro, e tentaram controlar a situ- ação, mas não dava mais. Mário ainda tentou convencer as crianças, mas estas não acreditavam mais, ainda mais porque este Papai Noel era muito magro.

- Ele não é o Papai Noel! Está com os óculos do tio Mário!

- É mesmo!

- Ele esqueceu de tirar os óculos fundo de garrafa!

- Ah, não!

A véspera foi um fiasco, e o dia de Natal também. Foram inúmeras as gafes de Natal este ano, assim como todos os anos. Muitas coisas ainda aconteceram naquela noite depois do caso dos Papais Noéis, e no dia vinte e cinco a coisa foi pior ainda.

Quando os parentes de despediam, depois do almoço do dia seguinte, Arnaldo conversava com sua mulher, Ana Maria:

- Ana, eu juro que não venho mais para o Natal.

- Não diga isso, Arnaldo, por favor.

- Mas todo ano é a mesma história, não agüento mais!

- É, paciência, né?

- Mas ainda bem que acabou.

- Acabou nada. Esqueceu? Ainda tem o Ano Novo, querido.

Ele se engasgou.




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